O Cansaço : uma leitura psicanalítica
- Margarida Viñas
- Sep 1
- 4 min read

Vivemos em uma época marcada por um paradoxo inquietante: nunca tivemos tantos recursos tecnológicos, tantas possibilidades de comunicação, de produção e de lazer, mas, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão cansados. O cansaço contemporâneo não se confunde apenas com fadiga física; trata-se de um esgotamento difuso, que atravessa o corpo, a mente e o desejo. Ele não se resolve com uma boa noite de sono, tampouco com férias programadas, pois está enraizado em algo mais profundo: a própria estrutura subjetiva de nossa sociedade.
A psicanálise, desde Freud, sempre se interessou pelas formas como a cultura molda o sujeito. Em O Mal-Estar na Civilização, Freud já apontava que o preço da vida em sociedade é uma quota inevitável de sofrimento psíquico. Hoje, poderíamos dizer que o cansaço é uma das formas predominantes desse sofrimento. A vida contemporânea, organizada em torno da produtividade, da aceleração e da promessa incessante de satisfação, parece exigir de cada um um investimento libidinal sem pausas, um dispêndio constante de energia psíquica. O resultado é um sujeito permanentemente exaurido.
A lógica do excesso
Um dos traços centrais da contemporaneidade é a lógica do excesso. Vivemos em um mundo que não conhece a falta, mas sim a abundância: excesso de informação, de estímulos, de conexões, de demandas. O imperativo não é mais apenas “trabalhar” ou “produzir”, mas estar sempre disponível, conectado e atualizado. O sujeito contemporâneo se vê convocado a um sempre mais: mais desempenho, mais visibilidade, mais experiência, mais gozo.
Do ponto de vista psicanalítico, esse cenário toca na questão do supereu. Se, em Freud, o supereu se apresentava como uma instância moral que proibia e limitava, hoje ele parece se reconfigurar como uma voz que ordena o contrário: não basta obedecer, é preciso desejar sempre mais. É o que Lacan chamava de “imperativo de gozo”: o sujeito não deve apenas viver, mas gozar — e gozar sem limites. O problema é que essa exigência é, em si mesma, impossível de ser satisfeita. Ninguém consegue corresponder indefinidamente a esse chamado. O resultado é um sentimento de insuficiência e, no limite, o cansaço como expressão de uma dívida impossível de ser paga.
O corpo como palco do mal-estar
O cansaço contemporâneo não é apenas mental; ele se encarna no corpo. Sintomas como insônia, ansiedade, fadiga crônica, dores difusas e até burnout tornam-se manifestações cada vez mais frequentes. O corpo, nesse contexto, aparece como último limite diante das exigências de uma sociedade sem pausa. É como se o corpo dissesse aquilo que a palavra não consegue mais formular: “basta”.
Do ponto de vista clínico, esses sintomas podem ser compreendidos como tentativas de o sujeito dar forma a um mal-estar difuso, uma maneira de colocar um freio diante do imperativo ilimitado. Quando o corpo cai, a engrenagem se interrompe — ainda que momentaneamente. O cansaço, nesse sentido, pode ser lido como um sintoma, mas também como um ato: ele sinaliza que há algo da ordem do impossível em jogo, que não se trata apenas de “falta de energia”, mas de um esgotamento estrutural.
A solidão no meio da conexão
Outro aspecto paradoxal da vida contemporânea é a experiência de solidão em meio a uma hiperconexão. Estamos constantemente ligados por telas, notificações e redes sociais, mas essa presença contínua não necessariamente se traduz em laços significativos. Pelo contrário, muitas vezes reforça o sentimento de isolamento. A psicanálise nos lembra que não se trata apenas da quantidade de relações, mas da qualidade do encontro com o outro.
O sujeito contemporâneo, exausto, muitas vezes não encontra no laço social um espaço de descanso, mas mais uma fonte de pressão: é preciso mostrar-se feliz, produtivo, desejável. A vida, transformada em vitrine, torna-se também mais cansativa. O cansaço, aqui, não é só físico ou mental, mas também existencial: uma exaustão de sentido, de estar sempre tentando corresponder ao olhar do outro.
O cansaço como resistência
Embora se apresente como um problema, o cansaço também pode ser lido, paradoxalmente, como uma forma de resistência. Se o sujeito contemporâneo é convocado a responder sem cessar, o esgotamento pode funcionar como uma espécie de limite imposto ao excesso. Nesse ponto, o cansaço deixa de ser apenas uma passividade e se torna também um gesto ativo: recusar-se a entrar no jogo da produtividade infinita.
Para a psicanálise, todo sintoma tem uma função, ainda que enigmática. O cansaço pode ser a maneira pela qual o sujeito tenta, ainda que de forma dolorosa, sustentar um espaço próprio. Ao dizer “não posso mais”, ele se desvia — mesmo que momentaneamente — do circuito que exige sempre mais. Nesse sentido, reconhecer o cansaço não é apenas buscar formas de eliminá-lo, mas também escutá-lo: o que ele está tentando nos dizer sobre o modo como estamos vivendo?
Possibilidades de outra relação com o tempo
Uma das questões centrais que emergem dessa reflexão é a relação com o tempo. A vida contemporânea é marcada pela aceleração: tudo precisa ser feito rápido, tudo deve estar disponível imediatamente. O tempo, que poderia ser vivido como duração, como espaço para o desejo se inscrever, se transforma em urgência. Daí que o descanso, o ócio e até o silêncio se tornem quase impossíveis — e, por isso mesmo, tão necessários.
A psicanálise não oferece receitas prontas para lidar com esse mal-estar, mas convida a um movimento de escuta e elaboração. Escutar o próprio cansaço pode abrir brechas para inventar outras formas de viver, menos submissas ao imperativo de gozo e mais próximas de um ritmo singular. Talvez a saída não seja eliminar o cansaço, mas integrá-lo como sinal de que algo precisa mudar. O descanso, nesse sentido, não é apenas físico, mas ético: um reposicionamento diante da vida e de suas exigências.
Conclusão
O cansaço da vida contemporânea não é apenas um problema individual, mas um sintoma coletivo. Ele fala da forma como organizamos o tempo, o trabalho, as relações e até mesmo o desejo. A psicanálise nos permite compreender esse fenômeno para além da lógica da produtividade, apontando que se trata de uma questão subjetiva e estrutural.
Escutar o cansaço — em vez de simplesmente tentar eliminá-lo — pode ser um gesto político e clínico. Político, porque questiona o modelo de sociedade que o produz. Clínico, porque abre espaço para que cada sujeito encontre sua maneira singular de lidar com os excessos da época.
No fim das contas, talvez o cansaço seja menos um inimigo a ser combatido e mais um chamado a repensar o que significa viver, desejar e estar no mundo hoje.



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